Ditadura: mal necessário?
João Quartim de Moraes*
Já desconfiávamos, mas a partir de fevereiro de 2010, tivemos certeza: o garboso supremo ministro M. A. Mello considera a ditadura “um mal necessário”. Foi o que ele respondeu ao estafeta da mediática televisiva que perguntou sua opinião sobre o escabroso tema e em especial sobre se havia em 1964 o risco de uma “ditadura comunista”. Mello comentou: “Tendo em vista o que se avizinhava, teríamos que esperar para ver; foi melhor não esperar”.
É o mesmo argumento surrado e vicioso dos milicos golpistas, das marchadeiras e outros clérico-fascistas: “vamos almoçar os comunistas antes de que eles nos jantem”. O preciosismo léxico e sintático do ministro sugeria que ele tivesse algum refinamento intelectual, mas pelo visto só tem pose. O fundo de seu pensamento é muito raso. Corrobora o preceito atribuído em latim de araque aos meganhas de delegacia: “in dubio, pau no réu”.
Há adjetivos que pedem um complemento nominal: mal necessário “a quem?” ou “para que?”; “não esperar” (para dar o golpe) foi “melhor” para quem? Se for consequente com suas ideias cavernosas e com as consequências do que diz, Mello deverá esclarecer se, assim como o general Ernesto Geisel declarou em conhecido depoimento, considera que além da ditadura, também a tortura é um mal necessário. Suas opiniões se tornam ainda mais preocupantes se considerarmos que Mussolini, Hitler e Franco chegaram ao poder exatamente com o mesmo argumento. A Marcha sobre Roma de 1922, o incêndio do Reichstag em 1934 e a sublevação militar-fascista de 1936 contra a República Espanhola tinham por objetivo imediato e principal acabar com os comunistas.
É livre a manifestação da opinião. Mas não é preciso ser hermeneuta profissional da Constituição para saber que essa liberdade não é, nem deve ser, absoluta. Quem pensa que alguns humanos são superiores aos outros, que há raças inferiores, que o mais forte deve eliminar o mais fraco etc., deve abster-se de propagar esses odiosos anti-valores. Sem dúvida, defender a ditadura, como mal menor, ou mesmo como salvação nacional, é um direito. Causa porém espanto e suscita repúdio que um magistrado cuja função precípua é defender a Constituição justifique um regime que rasgou a que tínhamos. Não sei se, entre os males necessários para evitar que nossas criancinhas fossem comidas pelos comunistas, o douto jurisconsulto inclui a cassação, por meio do Ato Institucional nº 2, de dois membros do STF que se recusavam a inclinar a cabeça perante os atropelos da clique militar no poder. O certo é que os membros restantes da Suprema Corte preferiram o “mal menor”: calaram-se para manter o cargo.
As opiniões do ministro M.A.Mello seriam menos preocupantes (embora não menos lamentáveis) se o STF não tivesse assumido, nos últimos anos, posição tão central no poder de Estado. A questão merece ser mais seriamente debatida na esquerda, principalmente entre os marxistas. Foi a Constituição vigente, fortemente inspirada, como as anteriores, nas instituições estadunidenses, que o colocou nessa posição. Nos Estados Unidos, a Corte Suprema está investida de grandes poderes, mas o STF, segundo juristas que merecem respeito, dispõe de poderes ainda maiores.
Causa certa perplexidade o fato de que nesses dois países, que se afirmam democráticos, um colégio de magistrados que não foram escolhidos pelo sufrágio universal, exerce poderes que chegam a sobrepujar aqueles que o povo conferiu pelo voto a seus representantes e mandatários. Afinal, o voto é a expressão constitucional da soberania do povo e esta é o princípio de legitimidade do poder político em qualquer regime que se pretenda democrático. A previsível réplica de que os membros do STF são designados pelo Executivo e aprovados pelo Senado não satisfaz. O modo de nomeação de embaixadores é o mesmo, mas nem por isso há um Poder Diplomático.
Enquanto os democratas consequentes, que defendem a plena soberania do povo, não considerarem prioritária a questão dos superpoderes do STF, continuaremos a assistir a revoltantes espetáculos como os proporcionados por Gilmar Mendes, interrompendo seu fim de semana para pôr na rua o financista espertalhão Dantas e perseguindo honrados funcionários do Estado, como o delegado federal Protógenes Queiroz e o juiz De Sanctis por pretenderem apurar com seriedade os crimes dos colarinho branco e mãos sujas. M.A.Mello também é gentil com os banqueiros. Se dependesse dele, Cacciola, outro malandro engravatado a quem ele concedeu habeas corpus a despeito de provas acachapantes de que tinha fraudado os cofres públicos num montante de 1,5 bilhões de reais, estaria ainda passeando na Itália.
Não será fácil a luta contra a hipertrofia dos poderes assumidos pela cúpula da burocracia judiciária. Um bom começo seria perguntar a quem se candidatar ao STF o que pensa do golpe de 1964. Estaríamos purgando aquela altíssima corte de novos partidários da doutrina do “menor mal”
*João Quartim de Moraes é Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.
Fonte: Vermelho
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