Fechando abril: Brasil descoberto & Tardios aromas de libertação
Anderson Ulisses*
Desde que iniciei minha trajetória transversa no ano da graça de nosso Senhor de 2013 d.C., sempre me deixo arrebatar pelo mês de abril, como já deixei bem registrado em pelo menos quatro textos pregressos: Apertos, aberturas, abris… e Perfumes de abril!, diretamente e 23 e Revoluções, Involuções, Florações…, indiretamente. Abril exala poesia! Há nele muitos afetos dispersos no ar. E suas datas datas, tantas efemérides que me são caras: a deusa Bastet (das únicas três divindades toleradas por meu ateísmo, junto com São Judas e Mestre Yoda), nascimento e morte de Shakespeare, morte de Cervantes, nascimento de Max Planck, a tomada de Berlim pelo Exército Vermelho, o assassinato da camarada Olga Benário e, claro, a lírica Revolução dos Cravos.
É difícil continuar a escrever sobre este tema sem me fazer repetitivo. A começar por o nome abril remetendo aa abertura, já que fora um dia o mês de início do ano. Na realidade dura cotidiana, aberturas e fechamentos, vide o dia da mentira, ressignificado no Brasil como dia do início da ditadura militar maldita que perseguiu, assassinou, estuprou, mutilou, torturou… É uma pena que abril não abra cabeças, não literalmente, afinal, DE FORMA ALGUMA, considero a tortura como método. Isso cabe aos débeis mentais ou filhosdaputa apologistas de crimes que são e que reivindicam o ABSURDO!
Mas, tentando não ser repetitivo e seguindo, pelo faro poético, o rastro volátil dos aromas de abril, tratemos dos temas anunciados ao título. Comecemos pelo tal “descobrimento” do Brasil. Até onde sei, a própria expressão, hoje em dia, comumente, é problematizada nas aulas de História, segundo vários pontos de vista e gradações de criticidade: “a chegada dos portugueses”, “a ocupação…”, “a invasão do Brasil” (este eu sou bem contra. Só os índios têm legitimidade para usá-lo, e, como disse semana passada, o Brasil não tem direito de assumir a vitimização e martírio indígenas), etc, etc… A questão aí é desconstruir a ideia de que o Brasil seja uma descoberta da colonização, pelo fato de que aqui já havia civilizações. Claro que podemos reproblematizar isso, sem perder o viés crítico, ponderando que Brasil tal qual concebemos é um conceito que, de fato, só faz sentido após a chegada dos colonizadores portugueses aqui. Então se trataria, talvez, dalgo mais profundo, como uma “invenção” mesmo do que seja Brasil.
Da forma como vejo toda essa história, o Brasil tem tido sucessivas redescobrimentos e não falo aí de “descobrir” equivalente a “encontrar”, “achar”, mas sim de se desvelar o que antes estava “encoberto”. Nesse sentido, estamos inda a nos descobrir um tanto. Ao que tudo indica, o Brasil, nos últimos anos, foi, então, “descoberto” por uma parte do mundo, só que ainda há tanto Brasil e brasilidade a se descobrir. Tem um baita Brasilzão encoberto de todo, desconhecido e silenciado que sequer descobriu a si próprio, quanto mais que pode reivindicar status de país e ir além!
Nesse descobrimento por vir, uma das coisas, dentre tantas, que precisamos nos questionar é quem somos afinal e como queremos nos apresentar e definir ao mundo e a nós mesmos. Aqui passo a tratar duma questão que, na verdade, não é reflexão original minha, mas emprestada da cara professora doutora Vanise Medeiros, da UFF, com quem tive o prazer de estudar Análise do Discurso na Pós. Tal reflexão passa, decisivamente, por essa área em que não sou especialista, mas da qual gosto de muita coisa por tantos interessantismos que tem. E, afinal, este texto já vinha, em algum nível, tratando mesmo de Análise do Discurso. Claro que aqui não me valerei de nenhuma terminologia mais específica da área.
Ocorre que é muito curiosa a forma pela qual nos denominamos: “brasileiros”. Ora, há, na língua uma série de sufixos formadores dos chamados “adjetivos gentílicos”, aqueles que indicam origem, nacionalidade, regionalidade, etc. Os mais comuns, em língua portuguesa, são “-ano”, “-ês” e “-ense”, como em:
– haitiano, marciano, kryptoniano;
– finlandês, escocês, cantonês;
– niteroiense, parisiense, canadense;
Além destes, há outras formações muito comuns aos gentílicos em português:
– argentino, filipino, novaiorquino;
– germânico, babilônico,asiático;
– catalão, alemão, afegão;
– europeu, eritreu, hebreu;
– egípcio, coríntio, fenício.
A referência aa origem pode até ser feita ainda por redução vocabular ou pela manutenção da forma da palavra quando o país ou região apresenta forma de feição adjetiva, como, respectivamente, em:
– belga, grego, árabe, persa, russo, cazaque, curdo, croata;
– tcheco, basco, bósnio, armênio.
Isso só pra falar dos principais processos de indicação de nacionalidade/origem. Ainda há os reduzidos: afro, braso, hispano, etc. Agora, origem com “-eiro” é algo pra lá de exótico! Esse sufixo forma, em geral, ocupação, profissão, atividade. Há muitos outros gentílicos referentes ao Brasil quase desconhecidos das pessoas em geral: brasileiro, brasiliano, brasilense, brasílico, brasiliense, brasílio, brasilês, brasilista. Não confundir nenhum desses com “brasilianista”, aquele que estuda o Brasil. Muita gente também não sabe que boa parte desses nomes já designou nossa nacionalidade. No séc. XIX, quando, após a independência, essa discussão se tornou mais presente muitos foram os nomes usados pra designar o habitante/nascido aqui. Já fomos, por exemplo, brasilenses e brasilienses, muito antes de Brasília. Já fomos brasilianos. Essa discussão, com trocadilho e tudo, apaixonou setores da sociedade em tempos de Romantismo. Por fim, após a república especialmente, cada vez mais passou a prevalecer a forma “brasileiro”. Não há gentílicos em “-eiro”. “Mineiro”, de fato, é, antes, uma designação de afazer, de profissão, de ocupação, já que o nome do estado advém da designação de “Minas Gerais do Império” e, por metonímia, toda a circunvizinhança passou a ser assim denominada. “Brasileiro” vem de onde então? Vejam que curioso, “brasileiro” era a denominação do comerciante de pau-brasil. Ou seja, adotamos por nome de nossa nacionalidade a primeira e mais simbólica forma de exploração de nosso próprio país. Ainda damos prosseguimento aa colonização em nós mesmos. Carregamos decalcada e recalcadamente a expropriação. Em idiomas muito próximos, nosso sufixo de nacionalidade atribuído é o que corresponde ao português –ano. Brazilian e não Braziler, brasileño em vez de brasilero, brasilien no lugar de brasilieur.
Isso tudo passa por identidade, uma discussão na qual ainda temos muito o que “descobrir” sobre o Brasil. Tal debate de identidade começou, mais intensamente, há quase 200 anos e ainda tem muitos de seus aspectos encobertos. Imagine quem iniciou tal aventura há menos de meio século. Essa é a situação de nossos irmãos colonizados em língua portuguesa no resto do mundo. Este ano, Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe celebram jovens 40 anos de independência. Guiné-Bissau não consta dessa lista por ter conquistado tal libertação em 1973, graças aas contundentes ações do PAICG (Partido Africano para Independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau, tendo por uma de suas principais lideranças o poeta guineense-caboverdiano Amílcar Cabral, assassinado em 1973), embora Portugal só a tenha reconhecido em 1974, após os Cravos de abril. E o Timor Leste também não figura aí, mas por razões contrárias, tendo caído nas garras da Indonésia, logo após se libertar de Portugal, situação da qual só se livraria em 2002, após muitas mortes, torturas e prisões, inclusive de quem falasse português no país. Mas, de todo modo, isso tudo dá uma dimensão bem abrangente aa Revolução dos Cravos, com efeitos d’além mar.
O que levou todas esses povos aa libertação foi a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, pondo fim a décadas de tardio e persistente governo fascista em Portugal. Os ecos da Grândola percorreram quilômetros sem fim, exalando aromas de abril pelo mundo de língua portuguesa. É verdade que, nos países africanos, todo esse processo foi muito pouco lírico. Especialmente em Angola e Moçambique, seguiram-se guerras civis, pelo próprio controle e direção dos países, que, além de muito extensas, dizimaram brutalmente suas populações. Até hoje, Moçambique tem minas terrestres ativas, com uma das maiores populações de amputados do mundo, em termos absolutos e relativos. Em Moçambique, a profissão de sapador, (des)instalador de minas, ainda mobiliza muita gente. Uma tristeza total.
Estes países estão a definir suas identidades como fizéramos antes. Poderíamos estar a contribuir muito mais com eles. Poderíamos a nos sentir muito mais próximos e identificados a eles. Poderíamos ser bons irmãos mais velhos, com as boas e más lições de nossa história. Espero que todos esses países, com dinâmicas societárias bem diversas e todos marcados pela diversidade cultural, o que inclui dezenas de outras línguas, além do português, não trilhem o caminho de extinção das culturas e línguas nativas que aqui singramos. Hoje, um importante cerne da discussão de diversidade cultural passa pelo continente africano, subsaariano especialmente, entre o cosmopolitismo das línguas europeias e a especificidade das expressões culturais nativas várias autênticas e genuínas. E o século XXI há de ser decisivo aa África em seu desenvolvimento social. Até metade deste século, por exemplo, Angola e Moçambique já serão nações de língua portuguesa majoritária. Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau vivem um concreto, real e dinâmico bilinguismo em seus cotidianos.
Identidades nacionais são duma complexidade vastíssima. Quase 200 anos após a independência, ainda temos tanto de Brasil a descobrir, em natural multiplicidade de sentidos. O que não dizer então desses jovens países lusofalantes? Espera-se que Portugal reconheça a enorme dívida histórico-social que tem com todas essas nações também e possa lhes oferecer parceria, com respeito aa sua diversidade. Que possamos nos irmanar e identificar com nossos países caçulas e revigorar aromas de abril, não só em cravos, mas em todo vigor do que flore em suas terras.
Independências:
Angola: 11/11/75
Cabo Verde: 05/07/75
Guiné-Bissau: 24/09/73
Moçambique: 25/06/75
São Tome e Príncipe: 12/07/75
Timor Leste: 28/11/75 (de Portugal), 20/05/2002 (fim da ocupação indonésia)
*Anderson Ulisses é flamenguista sobretudo, marxista, floydiano, letrólogo, gatófilo, nerd orgulhoso, cinéfilo, cosmólogo muito amador, professor de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira, exímio jogador de sueca, ávido por saber um pouco mais…
Fonte: Transversos
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