A quem interessa o voto distrital?
Marina
Lacerda*
A
Constituição de 1988 consagra o voto obrigatório e o princípio da
proporcionalidade nas eleições para a Câmara dos Deputados.
Qualquer reforma política que indique mudanças constitucionais terá
como consequência por em risco esses princípios, caros aos que
defendem maior maior representatividade na democracia brasileira.
Fiquemos
nos cartazes das últimas manifestações. Combater a corrupção,
acabar com os “partidos de mentirinha” e garantir a representação
às minorias NÃO necessitam de uma reforma constitucional. Precisa
apenas de mudanças nas leis que regem os partidos políticos e as
eleições.
Um
dos grandes cavalos batalha deste debate reside na possível adoção
do “voto distrital”. Os movimentos sociais clamam por menor
interferência do poder econômico nas eleições, com a adoção de
financiamento que exclua empresas do processo eleitoral. Mas estão
desatentos ao fato de que financiamento público com o fim do “voto
proporcional”, e adoção do “voto distrital”, para suas
bandeiras seria o pior dos mundos.
Aliás,
o termo “voto distrital” é, entre nós, usado impropriamente. No
rigor da ciência política, o distrito significa simplesmente a
unidade territorial de determinada disputa eleitoral, de modo que
toda eleição é distrital. Por exemplo, o distrito para as eleições
presidenciais no Brasil é o território nacional; o para as eleições
do parlamento federal são os Estados e o Distrito Federal, e assim
segue. Virgílio Afonso da Silva tem um texto muito didático sobre
isso.
Muito
bem. Mas quando o Presidente de um dos Poderes da República,
Ministro Joaquim Barbosa, vem à imprensa e diz que defende o “voto
distrital”, esse é o do jargão usado no Brasil, que significa
voto majoritário.
Pelo
método, o território brasileiro seria dividido em tantos distritos
eleitorais quantas as cadeiras em disputa na Câmara dos Deputados.
Assim, independentemente da divisão política do território em
estados e municípios, cada grupo de pouco menos de 200 mil eleitores
elegeria um deputado. Segundo seus defensores, esse sistema
aproximaria o eleito do povo, já que cada grupo de eleitores saberia
exatamente quem lhe representa na “câmara baixa”. O sistema
facilitaria a accountability –
anglicanismo para prestação de contas e transparência –,
genuinamente desejada pelo povo que está nas ruas.
E
quais são as desvantagens do modelo distrital?
A
primeira delas é a distorção da representação partidária. De
acordo com o maior estudioso brasileiro sobre o tema, Jairo Nicolau,
em 2010 no Reino Unido o Partido Liberal teve 23% dos votos, mas
ficou apenas com 8% das cadeiras. O sistema também provocaria maior
distorção da representação política, aumentando obstáculos à
representação parlamentar de minorias políticas como indígenas,
sem-terras, sem-tetos e grupos LGBT, cujos defensores dificilmente
conseguiriam eleger-se dentro de apenas um distrito.
Em
geral seus apoiadores estão mais espalhados pelo território,
precisando galgar uma sustentação mais difusa para sua eleição.
Além disso, o argumento da facilitação da accountability parte
do falso pressuposto de que os interesses dos 200 mil cidadãos de um
distrito seriam homogêneos, quando, na verdade, existem importantes
cisões econômicas, políticas e sociais que precisam ter
vociferação adequada no parlamento e que não podem ser subsumidas
a um único representante.
O
sistema do voto distrital incentiva aquele candidato com maior poder
econômico e/ou político, desfavorecendo outros grupos minoritários.
Outro
problema seria a predominância quase exclusiva das agendas locais na
representação, deixando de lado temas que, isoladamente para cada
distrito, perderiam importância, como direitos humanos.
O
sistema majoritário estimularia maior personalismo nas eleições,
tão prejudicial para o debate político, em que os projetos de
nação, de políticas públicas e de direitos cedem espaço a
peculiaridades da personalidade individual.
E,
por fim, há dificuldades operacionais relevantes, como as
possibilidades de manipulação do desenho dos distritos. Essa
prática, aliás, ficou conhecida como gerrymandering —
Elbridge Gerry, governador do Massachusetts e vice-presidente dos
EUA, em 1812 desenhou os distritos de modo a favorecer o candidato do
partido republicano.
Os
distritos chegaram a ficar parecidos com salamandras. O problema do
desenho dos distritos eleitorais é tão sério – em sistemas
majoritários puros ou mistos — que nos Estados Unidos, que usa o
sistema distrital, há importantes discussões sobre, por exemplo,
contemplar-se ou não questões sobre a composição racial da
sociedade no desenho dos distritos – gerrymandering
racial.
Ontem a Suprema Corte daquele país tomou uma decisão histórica em
relação à Lei dos Direitos de Voto de 1965 que tem consequências
também sobre isso.
Tantos
são os problemas que, de acordo com Jairo Nicolau, o voto distrital
vem perdendo adeptos no mundo – teriam sido treze os países a
abandonar o modelo em uma década.
A
regra majoritária, quando aplicada para a eleição dos
representantes do povo – aquela para a Câmara dos Deputados —
visa a garantir maiorias no parlamento e, assim, maior
previsibilidade e estabilidade. A regra proporcional visa a expressar
a força de cada partido, ou de suas ideias, no seio da sociedade.
Visa mais a garantir a pluralidade da representação. Hoje o próprio
sistema proporcional já provoca distorções de representação
partidária e política, relacionadas muitas vezes ao poder dos
grupos econômicos no processo eleitoral. Essas distorções seriam
agravadas com um sistema majoritário.
E
os sistemas mistos? Existem tantas versões hibridas que tendem ao
infinito. A mais popular é o sistema alemão, conhecido entre nós
como “distrital misto”. O eleitor possuiria dois votos, um para a
lista partidária e outro para o candidato.
Existem,
porém, várias perguntas a serem resolvidas, que não são de fácil
resposta e sobre as quais não há, de fato, acúmulo. Como seriam os
métodos de correção? Com aumento do número de representantes na
Câmara? Será possível o candidato concorrer simultaneamente no
distrito e na lista? Como serão compostas as listas partidárias?
Quem desenhará os distritos?
As
indagações são propostas por Jairo Nicolau, que aponta a imensa
complexidade desse sistema. Essa complexidade certamente irá
aumentar a sensação do eleitor da distância entre si e seus
representantes políticos.
Setores
progressistas da sociedade brasileira sempre debateram a reforma
política tendo como pressuposto a representação proporcional.
Plataforma Pela Reforma Política, PT, CNBB, etc., propuseram
mudanças que mantivessem essa característica essencial da
representação prevista em nossa Constituição.
O
acúmulo dessas ideias veio com a proposta apresentada pela OAB e
pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), amplamente
debatida. A ideia é original e inteligente, de uma votação em dois
turnos, que supera as eternas discussões entre listas fechadas e
abertas.
Ao
mesmo tempo, é muito simples, de modo que o eleitor se sentirá mais
contemplado, ao entender exatamente qual é o critério de eleição
dos representantes. No primeiro turno haveria votação no
partido, para definir o tamanho da bancada.
Assim,
a disputa do voto do eleitor deve dar-se com base em programas, e não
em artifícios publicitários ou em atrações individuais de
“puxadores”. A ideia é fortalecer os mecanismos de representação
efetiva. No segundo turno a votação se daria nos candidatos, para
definir então quais seriam os indivíduos a compor aquela bancada.
Uma
reforma política que escolha o sistema distrital irá sequestrar a
vontade que está nas ruas – vontade de oxigenação do sistema
político – para adoção de um sistema que favorece as oligarquias
locais e as elites econômicas e políticas. Desprestigiará, assim,
a pluralidade de interesses do povo na representação política ou
acreditará na suposta iluminação de determinados indivíduos.
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