segunda-feira, 5 de maio de 2014

O transformismo e os nossos desafios

Rita Matos Coitinho*

Cada época histórica enseja novos desafios para a ação política. Inútil, portanto, o apego às palavras de ordem do passado. Essencial a adaptação do discurso e da prática política à linguagem contemporânea, aos anseios ascendentes, às novas nuances da realidade social.

Até aqui nenhuma novidade nessas mal traçadas linhas. Mas o leitor, se acaso tiver mais alguns minutos, continue por aqui mais um pouco. É que a aparente simplicidade das conclusões listadas acima esconde problemas complexos para a ação política – em especial para aqueles que se orientam para algo além da gestão do Estado capitalista - aquilo que chamamos “socialismo” há 166 anos, desde a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, em 1848. 

É importante essa ressalva. Pois há partidos políticos (e são a maioria) cuja ação está circunscrita à disputa do aparato de Estado. Estar nas prefeituras, câmaras, parlamentos, governos estaduais e federal. Ocupar secretarias, administrar orçamentos, vender pareceres técnicos e mudar semestral ou anualmente o plano de trabalho dos servidores públicos concursados para que nada mude de fato, se é que me faço entender. Enfim, partidos do jogo político “legal” (às vezes nem tanto), da ordem, da palavra vazia nos parlamentos que funcionam como balcões de negócios, da dança de cadeiras na administração direta, indireta e autárquica. 


E há partidos de outra estirpe. Os “de novo tipo”. Novo porque se opõem ao velho e carcomido esquema político da burguesia. Porque enxergam para além da superfície, porque se organizam para desordenar as estruturas do capital. Sim, eles mesmos, os partidos comunistas. A ideologia burguesa, que coloca tudo de cabeça para baixo, vem espalhando por aí o boato de que os partidos leninistas são “velhos”. E tem muita gente bem intencionada que acredita. E traz para dentro das fileiras comunistas ideias “modernas” como a organização burguesa de partido. Tudo no maior quiprocó novidadeiro. Algo até meio semelhante à máxima da arte contemporânea, segundo a qual o resultado final não importa, apenas as “poéticas” do processo artístico (certo social-democrata alemão já dizia isso sobre a política há mais de 100 anos). Mas isso é tema para outra conversa.

É aí que chegamos ao ponto inicial deste ensaio, onde reafirmávamos alguns clichês sobre a adequação da tática à realidade. Questão esta que está ligada àquela afirmação impactante de Marx, já citada por João Amazonas em “Setenta anos de um partido que se tempera na luta”, de 1992: “Pactuai acordos para alcançar objetivos práticos do movimento, mas não trafiqueis com os princípios, não realizeis ‘concessões’ teóricas”. A frase de Marx, dirigida aos operários alemães, criticava o abandono dos princípios centrais dos comunistas em nome de um “acerto tático”. Porque uma coisa são os acordos bem delimitados (até com o inimigo, se for o caso, como o foi quando Stálin firmou um pacto de não agressão com os alemães na década de 1940), com objetivos claros e temporais. Outra coisa é “sobrevivência política” a qualquer preço, incluindo-se aí nos custos os princípios teóricos. 

A sobrevivência política a qualquer preço, a eleição a qualquer custo, partem da ideia central de que sem a presença nas instâncias do Estado não se pode fazer política. Essa ideia tem algo de correto, na medida em que a visibilidade de um parlamentar ou gestor nos ajuda, e muito, na propaganda ideológica e na luta política. Mas tem algo de profundamente equivocado também. 

Porque a “mensagem” que transmitimos às massas só nos ajuda a avançar na luta quando ela é, de fato, a nossa mensagem. É aí que entra a questão dos princípios. Não nos interessa, do ponto de vista da luta pelo socialismo, eleger gente que não defende a nossa política; eleger oportunistas e traidores de todo tipo, que ao menor descuido estão firmando acordos com toda sorte de gente e adentrando a todo tipo de governo; considerar como “aliados” toda sorte de aventureiros políticos, aceitar qualquer tipo de acordo, independentemente do programa, apenas porque nos dá uma “vaga” numa chapa ou uma secretaria qualquer com algum orçamento (para fazer o quê, mesmo?).

Esse comportamento considerado “novo” entre os comunistas é antigo e já tem nome. É aquilo que Gramsci, ao estudar o processo de unificação da Itália (o “Risorgimento”), classificou como transformismo. Nas palavras do próprio sardo: “o transformismo é tão-somente a expressão parlamentar do fato de que o Partido de Ação é incorporado molecularmente pelos moderados e as massas populares são decapitadas, não absorvidas no âmbito do novo Estado”. 

Apenas para situar o conceito, esclarecemos que Gramsci, neste texto sobre o “Risorgimento” Italiano - que está nos “Cadernos do Cárcere” - , buscava analisar o processo pelo qual o partido de Ação (de Garibaldi) abandonou sua combatividade inicial acabando por aderir ao programa da aristocracia piemontesa. Os grupos moderados e conservadores conseguiram conquistar e exercer a hegemonia política no processo do “Risorgimento” na medida em que os grupos mais radicalizados foram absorvidos e (metaforicamente) decapitados.

Conforme o texto: “Aliás, pode-se dizer que toda a vida estatal italiana, a partir de 1848, é caracterizada pelo transformismo, ou seja, pela elaboração de uma classe dirigente cada vez mais ampla, nos quadros fixados pelos moderados depois de 1848 e o colapso das utopias neoguelfas e federalistas, com a absorção gradual, mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliavelmente inimigos. Neste sentido, a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito longo”.

Deixadas de lado as diferenças entre as formações sociais e processos históricos, pode-se dizer que no processo de formatação do Estado burguês brasileiro o transformismo esteve presente, na medida em que, conforme os estudos de Florestan Fernandes (em especial “A revolução burguesa no Brasil”), houve um aburguesamento da aristocracia agrária e uma aristocratização da nascente burguesia, ambos acomodados no aparato de Estado moderno, sem grandes confrontos entre a “classe revolucionária” (a burguesia) e a classe dominante (a aristocracia agrária). Até porque muitos dos expoentes da burguesia em ascensão provinham da aristocracia rural. Tudo “em casa”, portanto.

Na quadra atual, a classe revolucionária (o proletariado) precisa encontrar os meios de, na ação política, ascender ao poder. Os comunistas, como partido do proletariado, buscam atuar politicamente para vencer a batalha de ideias e conquistar a hegemonia sobre a sociedade. Os meios são variados e é preciso que estejamos atentos às mudanças e aos anseios das massas trabalhadoras. Porém é preciso não perder de vista o que nos traz para a política: a transformação radical da sociedade. Atuar em todas as frentes sim, defender a democratização radical da política (pois a democratização da burguesia é sempre parcial), sem, porém, admitir o rebaixamento de nossos princípios. A revolução social do proletariado não se dará pela adesão ao programa da burguesia, muito menos pela aceitação do seu domínio sobre os processos políticos. Se acreditarmos nessa possibilidade – que nada mais é que a defesa de uma “revolução passiva” como programa -, estaremos fadados à absorção do nosso partido pelas forças da ordem, tornando-nos “mais um” agrupamento no jogo político pelo controle (parcial) do Estado burguês.

E isso tudo para fazer o quê, mesmo?

*Rita Matos Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina

Fonte: Vermelho

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