sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O retorno da diplomacia dos pés descalços


Rita Matos Coitinho*


É interessante o uso que fazem certos intelectuais do termo “ideologia”. No fundo é um raciocínio bastante simplório: ideologia é aquilo que dizem aqueles que discordam de mim. Então para os liberais há as ideologias de direita (o fascismo) e de esquerda, sempre autoritárias. No meio estão eles, cheios de razão, paladinos da liberdade do mercado, da imprensa etc. etc. etc. Deve ser bastante confortável a vida intelectual dessas pessoas, rodeadas de certezas.

Mas infelizmente (ao menos para eles) a realidade é bastante mais complexa e, puxa vida, como é duro ter que dizer isso: o pensamento liberal é, do começo ao fim, ideologia. Por quê? Porque “ideologia” não são apenas valores (de esquerda ou de direita), mas noções que falseam a realidade ou, em outras palavras, explicam a realidade por uma ótica incompleta. Ideologia é tudo aquilo que dizemos da sociedade (ou de nós mesmos) a partir de impressões superficiais. No combate às “formas ideológicas” de representação da sociedade, o bom e velho Karl Marx propunha que a estudássemos de uma maneira radical: indo à raiz dos problemas. Foi assim que Marx desmistificou a teoria do valor da economia política liberal e demonstrou que o fundamento da sociedade capitalista encontra-se não apenas no “trabalho”, como já apontava David Ricardo (que foi muito longe, reconhecia Marx), mas na relação social que se estabelece entre trabalho e capital.

Mas voltemos aos intelectuais “desideológicos”. Para um que está na mídia nos últimos dias, o embaixador Rubens Barbosa (veja aqui, no site nada ideológico do Instituto Milenium, a biografia do embaixador) “é preciso desideologizar a política externa”. Entrevistado pela Folha de São Paulo no último dia 21 (Clique aqui), o “chanceler” do governo Aécio Neves (caso ele vença as eleições de domingo) dispara contra a política externa do Governo Dilma e, embora mais timidamente - porque já se demonstrou ser impopular criticar o ex-presidente Lula - também critica as iniciativas do ex-chanceler Celso Amorim, atual ministro da Defesa.

Para Barbosa, a prioridade dada ao eixo Sul-Sul pelos governos Lula e Dilma fez o Brasil perder dinheiro e negócios. Aliás, “eixo Sul-Sul” é uma denominação ideológica, diz ele, que prefere o termo “países em desenvolvimento”. O Mercosul, diz Barbosa, deixou de ser um bloco econômico para ser um bloco social e político e tem nos impedido de avançar nas negociações comerciais com a Europa. A proximidade com a Venezuela também estaria nos fazendo perder parceiros econômicos e a postura arredia com os EUA estaria impedindo o país de realizar negócios rentáveis que nos trariam ganhos tecnológicos. Nossos negócios com Cuba seriam “obscuros” e precisariam ser “clareados”. Tudo isso, enfim, porque a Política Externa sob Lula e Dilma nunca foi uma “política de estado”, mas uma política partidária, submetida ao gabinete da assessoria especial da presidência da República. Enfim, uma política externa “ideológica”.

Uma política neutral deveria, portanto, promover a “liderança brasileira” na América do Sul, ao invés da parceria solidária que atualmente visa, entre outras coisas, reduzir as assimetrias entre os países do bloco. Os países vizinhos deveriam tornar-se mercados de produtos brasileiros, isso sim seria uma política de integração vantajosa. Em relação à Europa e aos EUA, o Brasil deveria priorizar os negócios que envolvem produtos de alta tecnologia, em especial, em matéria de defesa. E por aí vai. 

A “política externa de Estado” proposta por Barbosa, promoveria um realinhamento aos interesses dos Estados Unidos da América e da Europa, embora reconhecendo a China como parceiro estratégico. Para a África e a América do Sul, seriam colocadas na agenda as iniciativas de cooperação estritamente comerciais, visando, no caso da América do Sul, o estabelecimento de uma zona de livre comércio. Ao propor uma política externa “de Estado” o embaixador deixa claro que relações exteriores devam ser assunto de tecnocratas, e não do povo brasileiro, pois “não pega bem” a política externa ser modificada quando mudam-se os governos.

Aliás, o Brasil manteve “relaciones carnales” com os EUA desde 1902, sob a batuta do chanceler (e patrono do Itamaraty) Barão do Rio Branco. A tal ponto que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, literalmente entregou o sistema de monitoramento da Amazônia (o SIVAN) a uma empresa norte-americana, a Raytheon, em julho de 1997, conforme informa Jânio de Freitas (veja aqui). Segundo se sabe, o próprio FHC teria telefonado ao presidente Clinton para comunicar a contratação da empresa que iria, nada mais, nada menos, controlar todo o sistema de monitoramento da região mais estratégica do ponto de vista dos recursos naturais e hídricos do Brasil. Provavelmente FHC, intelectual da Sorbonne, estava orientado exclusivamente por questões de caráter técnico (portanto, não ideológico).

Imaginamos também que transformar a América do Sul numa enorme zona comercial aberta aos produtos brasileiros, ignorando-se as assimetrias e o provável declínio socioeconômico de nossos vizinhos a partir da invasão de produtos brasileiros não tarifados seja também uma questão de caráter técnico. Condenar a Venezuela por razões de “direitos humanos”, aceitando o que dizem as corporações midiáticas em ação do país e como quer o Departamento de Estado dos EUA, também não deve passar de uma decisão técnica. Falar alto com a Bolívia e com a Argentina em nome dos nossos interesses comerciais, ao mesmo tempo em que presenteamos o monitoramento das nossas fronteiras a empresas norte-americanas também deve ser, simplesmente, uma questão de ordem técnica. 

Deve ter sido com um raciocínio tecnocrático, apenas, para “não criar dificuldades”, que o chanceler de FHC, Luiz Felipe Lampreia (que coincidência, também colaborador do Instituto Milenium) aceitou tirar seus sapatos, estando em missão oficial nos EUA. Afinal, soberania e altivez, em matéria de política externa, são “pura ideologia”, certo senhor Rubens Barbosa?

(Devo o termo “diplomacia dos pés descalços” ao professor Amado Luiz Cervo, grande historiador da Universidade de Brasília, com vasta produção sobre Política Externa.)

*Rita Matos Coitinho é Mestra em sociologia, cientista social e doutoranda em geografia

Fonte: Vermelho

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