Duas impossibilidades teóricas do reformismo
Rita Coitinho*
Esta é a segunda parte do artigo da cientista social Rita Coitinho sobre a obra Reforma ou Revolução, da dirigente comunista e teórica marxista alemã Rosa Luxemburgo. A autora aponta duas das impossibilidades teóricas do reformismo: os limites da ação sindical e do cooperativismo e a socialização da produção sob o controle do capital
Em Reforma ou Revolução, Rosa Luxemburgo desconstrói cada uma das bases da teoria reformista, segundo a qual os sindicatos e as cooperativas, as reformas sociais e a democratização política do Estado são os meios para realizar progressivamente o socialismo, sem que se precise passar por uma ruptura política. Vejamos, resumidamente, como argumenta diante de cada um desses três pilares do reformismo:
Primeiramente, sobre a questão da efetividade da luta sindical, Rosa argumenta que há momentos de grande ascenso das lutas e conquistas, mas há também retrocessos e isso é parte da própria natureza da luta por melhores salários e condições de trabalho no interior do capitalismo. Simplesmente porque o desenvolvimento econômico leva a situações em que as conjunturas objetivas do mercado se tornam desfavoráveis à força de trabalho. Nos momentos de altíssima produtividade, a procura da força de trabalho aumenta mais lentamente e a oferta mais rapidamente. Também o próprio capital, em momentos de crise, para compensar as perdas sofridas no mercado mundial, se esforça por reduzir a parte do produto pertencente aos operários. "A redução dos salários não é, em resumo e segundo Marx, um dos principais meios de travar a baixa das taxas de lucro?"1.
Mas Bernstein precisava encontrar um fundamento econômico para sua formulação teórica. Assim, atribuiu aos sindicados a missão de "travar a luta contra a taxa de lucro industrial, transformando-a progressivamente em taxa de salário". No entanto está demonstrado historicamente - e já na época da publicação de Reforma ou Revolução - que os sindicatos não têm nenhum poder real para iniciar uma política de ofensiva contra o lucro porque na verdade são, unicamente, uma defesa organizada da força de trabalho contra os ataques do lucro, expressão da resistência da classe operária contra a tendência opressiva da economia capitalista. "E isto por duas razões: primeiro porque os sindicatos têm por tarefa organizar-se no mercado da força do trabalho; mas a organização é constantemente ultrapassada pelo processo de proletarização das classes médias que trazem permanentemente para o mercado de trabalho novos recrutas e, segundo, os sindicatos propõem-se a melhorar as condições de existência, aumentar a parte de riqueza social que vai para a classe operária; mas essa parte é constantemente reduzida, com a fatalidade de um fenômeno natural, pelo crescimento da produtividade do trabalho. Mas querer que os sindicatos consigam reduzir progressivamente o lucro em proveito do salário implica, primeiro, que cesse a proletarização das classes médias e o crescimento numérico da população operária; e, segundo, que a produtividade do trabalho deixe de aumentar; no caso de essas condições sociais serem realizadas, tratar-se-ia ainda aqui – tal como para a economia cooperativa de consumo – de um retorno a uma economia anterior ao capitalismo".
Os dois meios com que Bernstein pretendia realizar a reforma socialista, a saber, cooperativas e sindicatos, são totalmente incapazes de transformar o modo de produção capitalista. As cooperativas em geral só conseguem seguir em frente quando se adaptam e se utilizam dos mesmos mecanismos típicos da produção capitalista - demonstração disso é que em geral subsistem em poucos ramos da produção (e isso até os dias de hoje), como por exemplo o de alimentos. "As cooperativas e, sobretudo, as cooperativas de produção são instituições de natureza híbrida dentro do capitalismo: constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer, a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas (...). Uma cooperativa de produção tem a necessidade, contraditória para os operários, de se governar a si própria com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas. Dessa contradição morre a cooperativa de produção, na acepção em que se torna uma empresa capitalista ou, no caso em que os interesses dos operários são mais fortes, se dissolve. Estes são os fatos".
Desde Marx sabe-se que "o modo de repartição de uma determinada época é a consequência natural do modo de produção desse período: por consequência, o movimento comunista intensifica a sua luta não contra o sistema de repartição no quadro da produção capitalista, mas visa suprimir a própria produção mercantil capitalista. Numa palavra, os comunistas querem estabelecer um modo de repartição socialista suprimindo o modo de produção capitalista, enquanto o método do reformismo consiste, pelo contrário, em combater o modo de repartição capitalista na esperança de conseguir estabelecer progressivamente, por esse mesmo meio, um modo de produção socialista". Rosa diverte-se com a ideia ingênua dos reformistas de que se poderia chegar a abolir a apropriação do produto do trabalho pelo desenvolvimento jurídico do Estado. Pois se não há nenhuma lei que institua a legalidade da exploração da força de trabalho - que se dá pela expropriação histórica dos meios de produção e pela transformação da força de trabalho em mercadoria -, sendo ela uma manifestação econômica, como se pode esperar que se ponha fim à exploração capitalista por meio de modificações na legislação?
O fundamento da teoria da realização progressiva do socialismo por intermédio das reformas sociais implica certo desenvolvimento objetivo tanto da propriedade capitalista como do Estado. Conforme Rosa Luxemburgo, no tocante à primeira questão, o esquema do desenvolvimento futuro tende, segundo outro teórico do reformismo, Conrad Schmidt, "a restringir progressivamente os direitos do proprietário do capital, reduzindo-o a um papel de simples administrador. Para compensar a pretensa impossibilidade de destruir de uma só vez a propriedade dos meios de produção, Conrad Schmidt inventa uma teoria de expropriação progressiva. Imagina que o direito de propriedade se divide em 'direito supremo de propriedade' atribuído à 'sociedade' e obrigado, segundo ele, a alargar-se sempre mais, e direito de usufruto que, nas mãos do capitalismo, se reduzirá cada vez mais à simples gestão da empresa.
Ora, de duas coisas, uma: ou essa construção teórica não passa de uma inocente figura de retórica a que não se dá a mínima importância e então a teoria da expropriação progressiva perde todo o fundamento; ou representa, a seus olhos, o verdadeiro esquema de evolução jurídica; mas, neste caso, engana-se de uma ponta à outra. A decomposição do direito de propriedade em diversas competências jurídicas, a que Conrad Schmidt recorre para engendrar a sua teoria da 'expropriação progressiva' do capital, caracterizava a sociedade feudal baseada na economia natural: a repartição do produto social entre as diferentes classes da sociedade praticava-se naturalmente e fundamentava-se nas relações pessoais do senhor feudal com os seus vassalos.
Em compensação, a passagem à produção mercantil e a dissolução de todas as ligações pessoais entre os diversos participantes no processo de produção reforçou as relações entre o homem e a coisa, quer dizer, a propriedade privada. A partir desse momento, a repartição já não se fundamentava em relações pessoais, mas realizava-se pelos meios de troca; os diferentes direitos de participação na riqueza social não se mediam em frações do direito de participação à riqueza social, em frações do direito de propriedade de um objeto, mas pelo valor conferido a cada um no mercado. De fato, a primeira grande transformação introduzida nas relações jurídicas na sequência do aparecimento da produção mercantil nas comunas urbanas da Idade Média foi a criação da propriedade privada absoluta no próprio núcleo das relações jurídicas feudais, a criação do regime de propriedade parcelada. Mas na produção capitalista essa evolução não parou.
Por acréscimo, quanto mais o processo de produção é socializado, mais se fundamenta exclusivamente na troca e mais a propriedade privada capitalista adquire um caráter absoluto e sagrado. A propriedade capitalista, que era um direito sobre os produtos do seu próprio trabalho, transforma-se crescentemente num direito de apropriação do trabalho dos outros. Enquanto o capitalista gerava ele próprio a fábrica, a repartição contínua estava ligada, em certa medida, a uma participação pessoal no processo de produção. Mas, na medida em que se pode ultrapassar o capitalista para dirigir a fábrica – que é o caso das sociedades por ações – a propriedade do capital, enquanto participação na repartição, liberta-se completamente de qualquer relação pessoal com a produção, surge na sua forma mais pura e absoluta".
O esquema histórico dos reformistas que mostra o proprietário passando da função de "proprietário a simples administrador" não corresponde de modo algum à tendência real do desenvolvimento capitalista que é, na verdade, a passagem do proprietário e administrador a simples proprietário. O "controle social da produção", sob o capitalismo, não guarda nenhuma relação com a democratização do direito de propriedade - o que seria a apropriação coletiva do produto do trabalho. A função desse controle constitui, unicamente, uma maneira de normalizar as relações de produção capitalistas.
A última tese central da teoria reformista, apoiada no pretenso valor universal da democracia burguesa e nas possibilidades infinitas da democratização do Estado - o qual agiria como mecanismo de democratização das relações sociais - será abordada a seguir, na última parte deste ensaio.
Nota:
1 - Todas as citações são traduções livres do texto em inglês presente na seguinte edição para e-book: LUXEMBURG, Rosa. Reform or Revolution and Other Writings. New York: Dover Publications, 2006. O texto em português, embora com alguns problemas de tradução, pode ser encontrado em:
http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1900/ref_rev/index.htm
*Rita Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina
Fonte: Vermelho
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