quarta-feira, 10 de abril de 2013

Qual o sentido de se opor reforma e revolução?


Rita Coitinho*

Esta é a primeira de três partes do artigo Reforma ou Revolução: Rosa Luxemburgo e a luta contra o idealismo reformista, uma narração interpretativa da obra da grande revolucionária alemã.

Em 1900 Rosa Luxemburgo (1871-1919), destacada dirigente comunista e teórica marxista alemã publicava a brochura intitulada "Reforma ou Revolução". O texto respondia à polêmica que emergia no seio do Partido Social Democrata Alemão a partir, principalmente, das posições externadas pelo também dirigente do partido, Edouard Bernstein (1850-1932), em artigos sobre os problemas do socialismo, publicados no periódico Neue Zeit em 1897-1898 e também em seu livro Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie.

A polêmica principal girava em torno de uma questão aparentemente surpreendente: pode o movimento comunista ser contrário às reformas sociais? Para Rosa Luxemburgo é evidente que não existe uma oposição apriorística entre reforma e revolução. De acordo com ela, para os comunistas a luta contínua no interior do próprio sistema - pelo aprofundamento da democracia, pelas reformas, pela melhoria da situação econômica da classe trabalhadora - é o único meio possível de se iniciar o processo de luta pela conquista do poder político, orientado para o seu objetivo final, que é abolir o sistema capitalista. Há, portanto, um elo indissociável entre as lutas por reformas sociais e a revolução, sendo as primeiras o meio para se chegar à segunda. Então, no que se baseia a polêmica em torno dos conceitos de reforma e revolução? Foi nas formulações de Edouard Bernstein (e também de Conrad Smith) que esses dois elementos basilares do movimento operário apareceram, pela primeira vez, em oposição. 


De que maneira o reformismo opunha a tática do movimento comunista (lutar por reformas) à sua estratégia geral, o socialismo? As teses de Bernstein apoiavam-se no entendimento de que o capitalismo, por sua capacidade de adaptação e renovação constantes, não poderia desmoronar. De acordo com ele, a noção de revolução social pressupõe o colapso do sistema - de maneira catastrófica - o que lhe parecia ser improvável. Seus argumentos apoiavam-se em pretensos "erros" da teoria marxista das crises, uma vez que já não haveria crise generalizada - graças ao que ele chamou de "fatores de adaptação" do sistema: o crédito, a sobrevivência e ampliação das classes médias, a crescente diferenciação dos ramos de produção, a socialização da produção e a modernização das comunicações. 

A crescente melhoria das condições econômicas do proletariado, decorrente da ação sindical, segundo ele, demonstrava que o capitalismo poderia ser aperfeiçoado, por meio de reformas, de modo a se chegar ao socialismo - que nada mais seria do que o próprio resultado da evolução do próprio sistema capitalista e da socialização da produção: uma extensão gradual do controle social da economia e o estabelecimento progressivo de um sistema de cooperativas.

A formulação de Marx segundo a qual é o próprio capitalismo que traz em si a semente de sua destruição - por ação e efeito das contradições internas ao sistema - e que chegará um momento em que o equilíbrio será rompido e sua manutenção se tornará impossível, foi associada, pelos oportunistas, a uma ideia de que a ruptura revolucionária nasceria, necessariamente, de uma situação de crise catastrófica. Mas a existência de uma crise dessas proporções, segundo Rosa Luxemburgo, é mero detalhe acessório da ideia fundamental. De acordo com ela, com efeito, "o socialismo científico apoia-se em três dados fundamentais do capitalismo: primeiro, na anarquia crescente da economia capitalista que conduzirá fatalmente ao seu afundamento; segundo, sobre a socialização crescente do processo de produção que cria os primeiros fundamentos positivos da ordem social futura; terceiro, finalmente, na organização e na consciência de classe cada vez maiores do proletariado e que constituem o elemento ativo da revolução iminente"1. Essa descoberta de Marx, de que a realização do socialismo encontra apoio nos próprios fundamentos econômicos da sociedade capitalista, foi, sem dúvida, a maior conquista da luta da classe proletária. Até esse momento o socialismo não era mais do que um ideal. A partir daí tornou-se uma necessidade histórica.

De acordo com a pensadora alemã o reformismo elimina, justamente, o primeiro dos três fundamentos do socialismo científico, uma vez que pretende que a evolução do capitalismo não se orienta para um afundamento econômico geral, sendo possível desenvolvê-lo de maneira "humana", anulando-se paulatinamente as contradições. Para o socialismo científico, pelo contrário, a necessidade histórica da revolução socialista é, sobretudo, demonstrada pela anarquia crescente do sistema capitalista que o envolve num impasse. Se se admite a hipótese de Bernstein de que a evolução do capitalismo não se orienta para uma derrocada, o socialismo deixa de ser uma necessidade objetiva. Desta maneira, aos fundamentos científicos do socialismo restam os dois outros lados do sistema capitalista: a socialização do processo de produção e a consciência de classe do proletariado. Poderia o socialismo apoiar-se somente nessas duas bases restantes?

Ora, se o capitalismo pode aperfeiçoar-se a ponto de fazer desaparecer as crises, significa que estariam também abolidas as contradições internas geradas pelo antagonismo entre a produção e a troca e, portanto, a socialização da produção gerada pelo capitalismo poderia prescindir de uma passagem para o socialismo. Da mesma maneira, os fatores de adaptação poderiam produzir uma classe média tão numerosa que, ainda que não se pudesse fazer desaparecer, ao menos poderiam ser amenizadas as contradições de classe e, portanto, desapareceriam todos os antagonismos capazes de fazer surgir uma consciência de classe. "Assim, a desaparição das crises significa a abolição do antagonismo entre a produção e a troca numa base capitalista; dessa forma, a elevação do nível de vida da classe operária, seja qual for, mesmo quando uma parte desses operários passa a pertencer à classe média, significa atenuação do antagonismo entre o capital e o trabalho” e, portanto, da própria materialidade geradora de uma consciência de classe. É por isso que na teoria reformista perde-se completamente o sentido histórico das premissas e dos germens do socialismo. Resta-lhe apenas um sentido puramente teórico - idealista - como nos primórdios do socialismo utópico. 

Conforme Rosa Luxemburgo: "numa palavra: esta teoria fundamenta o socialismo num ‘conhecimento puro’ ou para usar uma terminologia clara, é o fundamento idealista do socialismo. Excluindo a necessidade histórica, deixa de se enraizar no desenvolvimento material da sociedade. A teoria reformista é obrigada a assumir uma das alternativas: ou a transformação socialista da sociedade é consequência das contradições internas do sistema capitalista e, então, a evolução do sistema inclui também a exacerbação das suas contradições, acabando necessariamente um dia ou outro na derrocada sob uma ou outra forma e, nesse caso, os ‘fatores de adaptação’ são ineficazes e a teoria da catástrofe é justa. Ou os ‘fatores de adaptação’ são capazes de evitar realmente o desmoronamento do sistema capitalista e assegurar a sua sobrevivência, portanto, anular essas contradições e, nesse caso, o socialismo deixa de ser uma necessidade histórica. A partir daí, é tudo o que se queira, exceto o resultado do desenvolvimento material da sociedade. Este dilema gera outro: ou o revisionismo tem razão quanto à evolução do capitalismo – e nesse caso a transformação socialista da sociedade é uma utopia – ou o socialismo não é uma utopia e, nesse caso, a teoria dos ‘fatores de adaptação’ perde a sua base: este é o problema".

Na segunda parte deste trabalho trataremos, com maior detalhe, de como Rosa Luxemburgo abordou as bases de apoio da teoria reformista e como evidenciou, aplicando as formulações do socialismo científico, a fragilidade e o idealismo intrínsecos a cada uma dessas teses.

Nota:

1 - Todas as citações são traduções livres do texto em inglês presente na seguinte edição para e-book: LUXEMBURG, Rosa. Reform or Revolution and Other Writings. New York: Dover Publications, 2006. O texto em português, embora com alguns problemas de tradução, pode ser encontrado em:
http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1900/ref_rev/index.htm

*Rita Matos Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina

Fonte: Vermelho

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