A morte justificada, mais um indígena tombado!
Igor
Vitorino da Silva*
O
silêncio cotidiano sobre o genocídio indígena no Mato Grosso do
Sul tortura-me. O grito e ação política dos indígenas e de seus
apoiadores ecoam para muitos cidadãos sul-mato-grossenses como ação
infundada, despropositada e inconsequente. Mais do que a indiferença
política e social, como acusam muitos militantes, aterroriza-me
certa cumplicidade social com o uso da violência e a celebração do
extermínio social, ou seja, aceita-se e enaltece-se socialmente a
morte como solução para a questão indígena tanto no Mato Grosso
do Sul como no resto do país.
Talvez,
haja certo exagero na minha afirmação. Ou uma “cegueira
política”, dirão os conversadores, alimentada pela indignação e
revolta que sinto ao ver as notícias de indígenas assassinados ou
de povos que foram expropriados das condições de construírem a sua
vida livre e digna, mas não há como não perceber que os povos
indígenas constituem os seres “matáveis” do desenvolvimentismo
projetado pelo Estado Brasileiro em articulação com tecnocracias,
grandes empresas, elites econômicas e oligarquias políticas
locais-regionais.
A
percepção social dos povos indígenas como entraves, gargalos,
usurpadores, aproveitadores e bloqueadores do “sonhado progresso e
desenvolvimento” minimiza e negligencia as forças sociais e
políticas descomunais e perversas que lhes ceifam dia-a-dia o
direito de viver em suas terras ancestrais. Essas imagens sociais
depreciativas difundidas pedagogicamente, de maneira
descontextualizada e generalizada, por parte das mídias nacional e
local associadas aos interesses dos grandes proprietários, buscam
descredibilizar socialmente a luta sediciosa e crítica dos
indígenas. Não é à toa que se ouve gente simples ou bem educada
pelos botecos e palácios de qualquer cidade do país afirmando:
Invadiram a propriedade alheia!
Eles
queriam o quê? Carinho? Tiveram o que mereciam. Esses bandos de
marginais, bandidos, falaciosos! Tem que matar mesmo!
Oziel
Gabriel será mais um? Transformá-lo-emos em mais um corpo a compor
os índices do extermínio histórico da população indígena
brasileira? Aceitaremos o discurso de que fora uma simples
fatalidade?
Creio
que o debate não pode paralisar-se na discussão sobre se as Forças
Públicas de Segurança podiam ou não levado as armas para a
desocupação, mas, sim, deve-se avançar na problematização (e
visibilidade pública) se, realmente, o que levou ao seu uso foi a
compreensão etnocidária, que é partilhada infelizmente por vários
indivíduos e grupos sociais sul-mato-grossenses e brasileiros, de
que o corpo indígena não vale nada e que é um corpo eliminável,
um corpo que pode ser imolado em nome da sagrada propriedade e da
soteriologia desenvolvimentista.
Esse
holocausto está tão arraigado e justificado socialmente que não se
discute e nem se percebe uma grande incoerência patente na imagem de
indígenas, que resistem com pedras e foices às forças de segurança
que exigem o cumprimento da ordem judicial com bombas de efeito
moral, treinamento policial para momentos de crise e armas de fogos
para “segurança” da tropa. E qual é a incoerência?
Desproporcionalidade de força e organização entre a resistência
indígena Terena e as forças de segurança pública.
Desproporcionalidade vivida no dia da resistência que significa
enfrentamento da violência dos jagunços, da estigmatização
negativa da mídia, do preconceito social, do peso da corrupção e
da articulação política e econômica de proprietários de terras
com membros dos poderes judiciário, legislativo e executivo e a
mídia nacional, denunciados diariamente por movimentos sociais,
pesquisadores personalidades políticas e ONG’S.
A
morte do indígena Terena Oziel Gabriel nos impõe uma grande questão
política: houve incompetência e ineficiência das forças policiais
ou uma operação de extermínio indígena? A justiça não se fará
apenas punindo os culpados e apurando-se os fatos, mas, sim,
produzindo ações que levem a sociedade brasileira a repudiar e a
combater a prática social, corriqueira e rotineira, de eliminação
física e social de indivíduos e grupos sociais indesejáveis ou
descartáveis para o “bom funcionamento da vida social”.
Como
construir uma ordem social democrática respeitada se alguns grupos
sociais e indivíduos querem se colocar acima dela e colocar outros
fora dela? Ou melhor, como falar em império da Lei se há cidadãos
mais iguais do que os outros? Não seria essa a primeira violência a
ser combatida? A violência do monopólio privado da Justiça e dos
Direitos? Solidarizo-me com a população indígena
sul-mato-grossense que resiste sem medo e destemor, dando a vida e o
sangue, contra o poder instituído que lhes nega o direito de viver.
*Igor
Vitorino da Silva é historiador e professor de História Campus Nova
Andradina/IFMS, e especialista em gestão integrada em segurança
pública.
Fonte:
Campo Grande News
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