É mais fácil demitir jornalista que bancário. Porque a gente não reclama
Leonardo
Sakamoto*
Diante
das levas de demissões de jornalistas, atualizo e reposto o texto
abaixo.
Não
é uma incitação à guerra, mas uma crítica à inação do
trabalhador. Do ponto de vista do mercado, patrões não estão
errados em aplicar o remédio que acham melhor, por mais amargo que
seja. Isso é o que se espera deles, quem pensa o contrário acredita
em Papai Noel e no Coelho da Páscoa. Nós que, ao permanecermos em
silêncio, acatando tudo bovinamente, é que estamos errados. Nós
não ficamos quietos quando os administradores de plantão da
República baixam ordens que prejudicam a população, gestadas a
quatro paredes, sem dar justificativa alguma, mas nos calamos quando
o mesmo acontece em nosso microcosmo. Um caso é de interesse público
e outro uma relação privada? Aham, Cláudia. Senta lá!
Jornalistas
são frequentes na Parada do Orgulho LGBT, na Marcha da Maconha, na
Marcha das Vadias, na Marcha pela Liberdade, na marcha para a cerveja
depois do fechamento, portanto, não me digam que não sabem o que é
um mobilização por uma razão justa. Até porque jornalista desce
para abraçar prédio pelas razões mais justas ou injustas. Mas é
incapaz de deixar o cada um por si e o sobrenatural da mitologia
cristã por todos e dizer “Pera aí! Isso não é certo com o
colega. Vamos conversar?”
De
tempos em tempos, nós – jornalistas – somos surpreendidos com
notícias de demissões coletivas em veículos de comunicação. Atos
que foram batizados carinhosamente de “passaralhos” (imaginem o
porquê). Não vou discutir as razões que levam à dispensa de
colegas de profissão – os motivos dos “ajustes” vão desde a
justa necessidade de sobrevivência do próprio veículo (fazer bom
jornalismo pode ser caro), passando pelos impactos causados pela
internet e/ou pela má gestão até a maximização de lucros da
empresa. Então, para não ser leviano, precisam ser analisadas caso
a caso.
Mudanças
acontecem e a nova geração que, hoje, pega uma revista e, com dois
dedinhos, tenta ampliar uma foto como uma tela sensível ou que não
entende por que a TV da sala não responde aos seus toques terá um
relação diferente com as mídias que temos hoje. Jornais e revistas
vão morrer no meio dessa transição. Outros migrarão para a
internet. Veículos novos vão surgir, pensados para plataformas
digitais, multimídias, interativas. Quem não se adaptar e não se
planejar para essa virada, vai comer capim pela raiz mais cedo.
Vou
me ater ao outro lado do balcão, ou seja, como reagimos a isso. Até
porque, após uma leva de demissões, não fico sabendo de nenhum ato
de solidariedade aos demitidos pelos próprios colegas de redação.
Talvez pelo medo de também perder o emprego, talvez pela sensação
de impotência que resulta da lenta e contínua acomodação, talvez
por que o prazo do fechamento não deixa, talvez por algo maior que
isso. O fato é que, quando colegas começam a serem chamados para a
sala de reunião para uma conversa com o chefe, não raros nos
afundamos em nossas baias, torcendo para não sermos vistos.
Nós,
jornalistas, muitas vezes não nos reconhecemos como classe
trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos
laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais,
seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que
essa situação não é real e que também somos operários,
transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são
mais necessários em determinado lugar.
Ou,
às vezes, nem isso. Já vi colegas se culparem por terem sido
demitidos sem justa causa no melhor estilo “perdoa-me por me
traíres” de Nelson Rodrigues. “Deveria ter virado mais
madrugadas na redação”, “deveria ter me oferecido para
trabalhar em todos os finais de semana”, “não deveria ter
corrigido o português ruim do meu chefe”…
Fazer
protestos por melhores condições, que incluem uma certa
estabilidade para reportar sem temer o que se escreve? Imagina! É
coisa de caixa de banco, de operário sujo de graxa ou de condutor de
trem que atrasam nossa vida e geram congestionamentos na cidade. Ou
de inglês, francês e italiano que têm a vida ganha e mamam no
Estado. Enquanto isso, quem tem consciência de que é um trabalhador
e reivindica coletivamente, como muitos bancários, metalúrgicos e
metroviários, tem mais chances de obter o que acha justo.
O
mais engraçado é que o contrato social de compra e venda da força
de trabalho, sobre o qual o capitalismo está estruturado, pode ser
rasgado unilateralmente, sem discussão, e muitos de nós ainda acham
que isso faz parte do direito da parte mais forte.
Quando
vejo algumas coberturas jornalísticas mal feitas de protestos e
greves fico pensando como pessoas que não conseguem se reconhecer
como classe trabalhadora podem entender as reivindicações de
trabalhadores. O fato é que não somos observadores externos e nem
podemos ser. Somos parte desse tecido social, desempenhamos uma
função, somos parte da engrenagem, gostemos ou não.
Muitos
não se perguntam de onde vem o dissídio. Como uma criança que acha
que o leite vem do mercado, pensamos que o reajuste vem do nada, sem
ter sido fruto de muito diálogo entre capital e trabalho. Não é
irônico que os profissionais que informam sobre e analisam a
democracia diariamente não exerçam sua “cidadania profissional”?
A
vida de jornalista, deixando de lado o falso glamour, não é fácil.
Ainda mais para aqueles que são patrões de si mesmo, não por
decisão própria (para empreender algo, por exemplo), mas porque
foram empurrados para isso. Tem gente que é feliz porque é frila. E
tem gente que se diz feliz quando é frila.
Sempre
gostei do poema do dramaturgo alemão Bertolt Brecht que tratava da
indiferença: ”Primeiro levaram os comunistas,/Mas eu não me
importei/Porque não era nada comigo./Em seguida levaram alguns
operários,/Mas a mim não me afetou/Porque eu não sou
operário./Depois prenderam os sindicalistas,/Mas eu não me
incomodei/Porque nunca fui sindicalista./Logo a seguir chegou a
vez/De alguns padres,/ Mas como nunca fui religioso,/também não
liguei./Agora levaram a mim/E quando percebi,/Já era tarde.”
Andaram pela mesma linha Maiakovski e Niemöller, escrevendo sobre o
não fazer nada diante da injustiça para com o outro, até que,
enfim, o observador passivo se torna a vítima. Hoje, não é comigo,
então que se danem os outros. E quando chegar o amanhã e vierem
bater à sua porta?
Ou,
lembrando John Donne, poeta inglês, citado em “Por Quem os Sinos
Dobram”, de Ernest Hemingway, ao defender que a morte de qualquer
homem me diminui, pois sou parte da humanidade: nunca procure saber
por quem os sinos dobram. Pois eles dobram por ti.
*Leonardo
Sakamoto é Jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu
conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor
Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é
coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Fonte:
Blog do Sakamoto
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