terça-feira, 24 de novembro de 2015

105 anos da “Revolta da Chibata”

Raul Carrion*

Às 22h55 minutos do dia 22 de novembro de 1910 – há exatos 100 anos – ecoaram na Baía da Guanabara os tiros dos canhões da poderosa Armada do Brasil, recentemente renovada na Inglaterra com as mais mortíferas belonaves do mundo. Entre os navios rebelados estavam os poderosos dreadnoughts Minas Gerais e o São Paulo, encouraçados pesados de última geração, armados com canhões de grande alcance e enorme poder destrutivo.

No elegante Clube da Tijuca, a nata da sociedade carioca participava de uma luxuosa recepção, promovida pelo recém empossado presidente da República – o marechal Hermes da Fonseca.


Os telégrafos funcionam freneticamente dando notícias desencontradas, até que os primeiros oficiais e sub-oficiais fugidos desembarcam no cais e relataram que os marinheiros – em sua imensa maioria negros – haviam se apossado pela força dos navios e assumido o seu comando. A revolta teria causado a morte de diversos oficiais e marinheiros. O chefe dos revoltosos – o marinheiro de 1ª classe João Cândido Felisberto, gaúcho de Encruzilhada do Sul –, manobrava a esquadra, com a maestria de um Almirante e ameaçava bombardear a capital da República, caso as suas reivindicações não fossem atendidas.

E quais eram, 22 anos após a abolição da escravidão, as reivindicações dos marinheiros rebelados?


Exigiam que o Presidente da República pusesse fim à chibata e aos castigos físicos na Marinha, houvesse tratamento digno aos marinheiros, soldos justos e anistia aos revoltosos: “Nós marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira (...) que durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da pátria (...) que V. Excia. faça (...) reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo (...) Tem V. Excia o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada.”

Antecedentes

O Brasil foi o último do mundo a abolir a escravidão, mas isso não significou uma verdadeira libertação do povo negro. Excluídos do direito à propriedade pela “Lei das Terras” de 1850, excluídos do trabalho livre pela imigração européia e por políticas racistas que pregavam o “branqueamento” da população brasileira, despossuídos dos mais elementares direitos civis, os negros sobreviveram na periferia dos centros urbanos ou em áreas rurais marginais, em condições de subemprego crônico.

Na Marinha Brasileira, a oficialidade, era toda ela branca, sem exceção, e provinha de famílias oligárquicas, até bem pouco escravocratas. Já os marujos, na imensa maioria, cerca de 90%, eram negros, mulatos ou mestiços recrutados à força entre as camadas mais pobres da sociedade, muitos retirados das prisões. Assim – apesar de terem decorrido décadas desde a abolição –, as relações entre os oficiais e os marinheiros continuavam reproduzindo as relações das senzalas e o uso da chibata para o castigo dos marinheiros era visto como algo normal.

É verdade que logo após a proclamação da República, havia sido editado o decreto nº 3, em 16 de novembro de 1889, abolindo os castigos corporais nos navios de guerra. Mas, em 12 de abril de 1890, o decreto nº 328 reintroduziu a chibata na Marinha, através da chamada Companhia Correcional, no que eram enquadrados os marinheiros considerados “indisciplinados”. Seu artigo 8º determinava: “Para as faltas leves, prisão e ferro na solitária, a pão e água; faltas leves repetidas, idem, idem por seis dias; faltas graves, 25 chibatadas.” É desnecessário dizer que esse número não era respeitado, ficando ao arbítrio do comandante a sua quantidade, que em geral excedia em muito o prescrito.

Um episódio, aparentemente trivial, espelha bem o recorte racial e de classe existente na Marinha Brasileira da época. Tão logo ingressou na Marinha, João Cândido Felisberto teve que abrir mão do nome Felisberto, pois havia um suboficial com o mesmo nome, que não aceitava ser confundido com um negro...

É essa realidade anacrônica que entra em choque, no início do século XX, com a modernização da Marinha. De fato, em 1906, em um ambicioso plano de modernização de sua Armada, o governo brasileiro encomendou da Inglaterra dois grandes encouraçados – o Minas Gerais e o São Paulo – três cruzadores, seis contratorpedeiros, seis torpedeiros, seis torpedeiros menores, três submarinos e um navio carvoeiro, tornando-se a terceira mais poderosa marinha de guerra do mundo.

Para aprender o manejo desses modernos navios, centenas de marujos brasileiros – entre eles João Cândido Felisberto, já então marinheiro de 1ª classe – foram enviados em 1908 para os estaleiros de New Castle, na Inglaterra, onde passaram a conviver com marinheiros de todo o mundo e tiveram contato com as idéias avançadas da classe operária européia. Da mesma forma, tomaram conhecimento da revolta do encouraçado Potenkim – ocorrida em 1905, na frota do Mar Negro. Todas essas experiências inspiraram a sua decisão de lutar por condições dignas de vida e de trabalho na Marinha Brasileira. O próprio João Cândido confirmou, anos depois, que a preparação da Revolta da Chibata teve início na Inglaterra.

A Revolta

De volta ao Brasil, no início de 1910, João Cândido passou a articular a revolta junto com Francisco Dias Martins, o “Mão Negra”, tendo como principais reivindicações a abolição da chibata, a melhoria da alimentação e a elevação dos soldos. O país vivia os rescaldos da campanha presidencial que dividira o país entre os partidários do Marechal Hermes da Fonseca – o vencedor – e o civilista Rui Barbosa.

Inicialmente, a revolta foi marcada para o dia 15 de novembro, mas um forte temporal nesse dia fez com a mesma fosse adiada para 24 ou 25 de novembro. Um acontecimento inesperado, porém, antecipou a deflagração do movimento.

No dia 16 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes – do encouraçado Minas Gerais – foi retalhado por 250 chibatadas, por haver ferido levemente, com uma navalha de barbear, o cabo Valdemar de Sousa que lhe denunciara por haver tentado introduzir duas garrafas de aguardente no navio. Com requintes de selvageria e perante toda a tripulação reunida para assistir o castigo, Marcelino foi açoitado até perder os sentidos. Reanimado à força, o castigo prosseguiu, até quase a morte. Dias depois, quando o Comandante José Carlos de Carvalho visitou o encouraçado Minas Gerais, para negociar o fim da revolta, afirmou: “as costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.

Naquela noite, nos porões do encouraçado, os marinheiros juraram que isso teria fim e que Marcelino seria o último marinheiro chibatado. A revolta foi antecipada para a noite do dia 22 de novembro, quando fosse dado o toque de recolher. Como disse João Cândido, anos depois: “Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate!”

E assim foi. Às 22h55min do dia 22 de novembro explodiu a insurreição a bordo do encouraçado Minas Gerais. O Comandante João Batista das Neves e dois oficiais que resistiram foram mortos, os demais aprisionados. Pouco depois, a guarnição do São Paulo também se sublevou e forçou os oficiais a abandonarem o navio. Não houve mortes. Mas, no cruzador Bahia, a luta também cobrou vítimas. Às 22h50, quando o Minas Gerais disparou um tiro de canhão para comunicar-se com os navios comprometidos com a rebelião, o São Paulo e o Bahia responderam. Pouco depois, o encouraçado Deodoro, mais antigo, também respondeu.

A revolta havia sido vitoriosa. Os rebeldes dominavam os navios mais poderosos e controlavam a baía da Guanabara, na capital da República. As tripulações dos navios menores haviam sido transferidas para esses quatro navios – onde tremulava a bandeira vermelha – para fortalecer a sua capacidade de combate. As baterias de terra e os poucos navios fiéis ao governo permaneciam silenciosos diante do poderio esmagador da frota insurreta. O Rio de Janeiro estava à mercê dos rebeldes. A esquadra rebelada manobrava – dirigida por João Cândido e seus marinheiros – com grande habilidade, sem qualquer oficial a bordo. 

Surpreendido pelos acontecimentos, o Presidente Hermes da Fonseca retornou ao Palácio do Catete, tomando conhecimento da primeira mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao Presidente da República, ao Ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem.” Sem meios para resistir à revolta, Hermes da Fonseca não sabia o que fazer.

O Senador Pinheiro Machado, homem forte do governo, enviou o deputado Federal pelo Rio Grande do Sul – Comandante retirado José Carlos de Carvalho – para parlamentar com os marujos. Ao voltar de sua missão, Carvalho prestou um depoimento ao Congresso que estarreceu a nação, mostrando o barbarismo com que os marinheiros eram tratados.

Em suas proclamações, os revoltosos deixam claro o motivo central da luta: “Por isto, pedimos a V.Excia. abolir o castigo da chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito de nossa liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados.”

Nesse contexto, coube ao Senador Rui Barbosa apresentar um projeto de anistia aos insurretos, à qual se somariam o compromisso do fim do castigo da chibata e a melhoria das condições de trabalho na Marinha. Depois de um intenso debate – onde alguns parlamentares questionaram sua concessão antes que os rebeldes depusessem as armas – a anistia foi aprovada com rapidez, tanto no Senado como na Câmara dos Deputados. Concluída a votação da anistia e anunciado pelo Governo o fim dos castigos físicos na Marinha, no dia 26 de novembro a bandeira vermelha foi arriada dos navios e os mesmos foram entregues em perfeita ordem aos novos comandantes.

A anistia traída e a vingança contra os revoltosos

Ainda não havia secado a tinta com que havia sido assinada a anistia e já as oligarquias dominantes começaram a tramar a repressão aos anistiados. No mesmo dia 26, o Comandante do cruzador Bahia enviou correspondência indicando 10 nomes que deveriam ser expulsos da Marinha. No dia 27, os canhões dos navios foram desativados e as munições desembarcadas. No dia 28 o decreto nº 8.400 autorizou a expulsão da Marinha de qualquer marinheiro “cuja permanência se tornar inconveniente à disciplina”.

Mas o pior ainda estava por vir. No dia 9 de dezembro, depois de ampla difusão do boato de que o exército invadiria os navios e as bases navais para massacrar os marinheiros, teve início uma revolta no Batalhão Naval da ilha das Cobras e no cruzador ligeiro Rio Grande do Sul, sem a participação de João Cândido e seus seguidores. Isolados, os revoltosos foram dizimados, apesar de hastearem a bandeira branca. Em seguida, o governo se valeu do acontecido para obter a aprovação do Estado de Sítio e deflagrar a repressão aos anistiados.

Na noite de Natal, mais de uma centena de marinheiros foi jogada no cargueiro Satélite, do Lóide Brasileiro, com destino a Santo Antônio da Madeira e Linha Telegráfica, na Amazônia. No caminho, muitos foram fuzilados. Os demais, ao chegarem na Amazônia, foram sendo entregues, ao longo do rio, a seringueiros que necessitavam de mão-de-obra. A maioria acabou morrendo de doenças tropicais ou na semi-escravidão. Referindo-se a esses fatos, Edmar Morel – o escritor que descobriu João Cândido no fim de sua vida e o livro A revolta da Chibata – denuncia: “Ganhei o original de um documento inédito. O relatório do comandante Carlos Storryu, do Satélite, cargueiro em que foram fuzilados diversos marinheiros anistiados, alguns com os pés e mãos algemados.”

No início de 1911, outros 2.000 marinheiros foram expulsos da Marinha.

João Cândido e outros 17 líderes – mesmo não tendo qualquer envolvimento com essa segunda revolta – foram encerrados em uma masmorra sem ventilação e asfixiados com cal viva, lançada sobre eles. Dezesseis morreram, só João Cândido e “Pau de Lira” sobreviveram. Alquebrado, João Cândido foi internado no Hospital de Alienados e dado como louco.

Analisando essa traição, Evaristo de Moraes Filho, no prefácio à terceira edição de A Revolta da Chibata, afirma: “A verdade é que a anistia que fora concedida pelo governo num momento de pânico e de medo, nunca chegou realmente a ser aplicada. Refeito do susto, o governo prendeu, deportou, massacrou os participantes da revolta, com requintes de barbaridade e de vingança tardia.”

Perseguido até a morte

Quando recebeu alta do Hospital de Alienados, João Cândido foi novamente encerrado em uma prisão, onde permaneceu por 18 meses aguardando julgamento. Sem recursos para contratar um advogado, foi defendido por Evaristo de Moraes, contratado pela Irmandade da Igreja Nossa Senhora do Rosário, o qual se negou a receber qualquer remuneração pelo seu trabalho. Só em 1912, João Cândido foi julgado e absolvido. Tão logo saiu da prisão, com os pulmões tomados pela tuberculose, foi expulso da Marinha.

Desempregado e com a saúde abalada, buscou algum trabalho para sobreviver. Inicialmente, tentou emprego no Lóide Brasileiro, mas nada conseguiu. Na Costeira, a resposta também foi negativa. Depois de muito caminhar, conseguiu trabalho no patacho Antonico. Mas pouco tempo depois foi demitido por pressão da Marinha. Conseguiu emprego no barco Ramona, depois no Ana, mas sempre acabava demitido. Vítima permanente de perseguição, o “Almirante Negro” – que conseguira a proeza de manobrar com maestria as mais modernas e poderosas belonaves – teve de desistir de ser marinheiro. Foi convidado para trabalhar como “tira”, mas recusou com altivez. Preferiu sobreviver vendendo peixe no cais do porto.

Alguns anos depois, foi descoberto pelo escritor comunista Edmar Morel, que, com base em longas conversas com ele, foi o primeiro a relatar a epopéia dos marinheiros rebelados em seu livro A Revolta da Chibata, publicado em 1963. Não por acaso, Edmar Morel será punido com a dispensa compulsória e a cassação de seus direitos políticos pelo golpe de 1964.

Durante o Governo Goulart, João Cândido recebeu uma humilde pensão, mas esta lhe foi retirada pela ditadura militar. O “Almirante Negro” veio a falecer em 1969, aos 89 anos de idade, em situação de penúria.

Em 24 de julho de 2008, o Presidente Lula sancionou a Lei 11.756/08, concedendo a anistia póstuma a João Cândido Felisberto e a seus companheiros de rebelião. E, em 20 de novembro de 2008, o “Almirante Negro” teve a sua estátua inaugurada na Praça Quinze, no Rio de Janeiro, com a presença de Luís Inácio Lula da Silva. 

Ainda que ignorado pela maioria dos historiadores oficiais, a sua luta mudou o Brasil e fez com que nunca mais qualquer marinheiro brasileiro sofresse a infâmia da chibata. João Cândido Felisberto viverá para todo o sempre na memória do povo brasileiro e seu exemplo germinará nas novas gerações de combatentes pela Liberdade e pelo Socialismo!

"Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do Mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como Almirante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
(...) Rubras cascatas
Jorravam nas costas dos negros
Pelas pontas das chibatas
(...) Salve o Almirante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas no cais".
João Bosco e Aldir Blanc


*Raul Carrion é Historiador e membro da Comissão Política do PCdoB/RS. Foi vereador de Porto Alegre em três legislaturas e deputado estadual do RS por duas legislaturas. Atualmente, preside a Fundação Maurício Grabois-RS

Fonte: Vermelho

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